domingo, 26 de agosto de 2012

O menino saltou (4)



O homem levantou-se, olhou a criança, depois a mãe, encheu de ar o peito e disse em tom decidido e carregado de alívio: - vou para casa, tenho gente que me ama e me espera. No momento de partir não consegui escutar ninguém, a nenhum deles dei ouvidos. Parei a tempo, não sei que força me prendeu a este banco - disse fixando o olhar frio no banco de madeira - mas isso não é importante, o que interessa é que agora estou decidido a voltar para trás, para casa.

Olhou a mulher, em tom jovial e notoriamente feliz, agradeceu com um obrigado e um sorriso largo, curvou-se, pegou na pequena mala depositada a seus pés. Ao sair ainda teve tempo para, com a costa da mão, fazer uma carícia no rostinho da criança pequenina enquanto recordava que fora a sua mãozita que o fizera tomar consciência da insana atitude que estava a tomar.

Saiu e dirigiu-se apressadamente para um dos taxistas que estavam ali parados, pacientemente aguardando que alguém precisasse dos seus serviços. Trocaram algumas palavras. Entrou no carro, que arrancou vomitando breves nuvens de fumo negro.

Dezassete minutos foi o tempo necessário para reencontrar a casa e os que teimosamente tinha decidido deixar, sem saber para onde ir nem porquê sair. À mãe perguntou pela irmã. Estava grávida, prestes a ver o rebento que no seu seio se gerava e que, dentro de pouco tempo, poderia ver de olho vivo e não apenas pelas imagens ecográficas com que, havia meses já, tinha podido ver que se tratava de um menino.

Olhou o irmão e a emoção percorreu-lhe a espinha, afinal ele não tinha partido e ela sentia que o não tinha perdido. Sentia-se quase ser mãe duas vezes ao mesmo tempo: um irmão que não parte e um filho que vai nascer.

Também a este parece ter agradado a ideia de que o tio não tenha partido: sem parecer querer sair do materno ambiente em que fora gerado, estremeceu ao sentir a emoção da mãe. - Até o menino saltou quando te viu - disse a mãe, como se realmente o bebé não tivesse simplesmente reagido a uma forte emoção.

Ele, o homem do banco de madeira, reagiu passando a mão pela barriga prenhe da irmã e num tom suave de voz exclamou, em jeito de condenação: - como pode alguém querer poder justificar a morte provocada de um ser como esse que tens aí dentro de ti? Não se trata de dois simples corpos independentes, ele não poderia ter sido gerado sem ti, ele dependeu sempre de ti, como pode uma mãe ousar dizer que faz do seu corpo o que muito bem entender?!

Num misto de dor e alegria, as lágrimas saíram dos olhos dela porque, nesse momento, e em jeito de flash de luz tenebrosa, recordou as horas longas que passou em branco no meio da noite escura depois de o médico lhe dizer que corria risco de perder o bebé.

           Apertou o irmão num abraço forte. Ele afastou-a um pouco, olhou-a nos olhos e disse: - sabes uma coisa mana?...  

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Os homens também choram (3)

Passos sonoros de tacão longo, chamado de salto alto, fazem-se ouvir na laje fria da estação. 

Uma criança pequenina corre curiosa e pára, à entrada, para percorrer tudo com o olhar como que a descobrir o mundo ali dentro. Terá talvez menos de dois anos, uns olhitos bem abertos e a respirar vida. Como qualquer criança pensa que todo aquele espaço está ao seu dispor. Num movimento rápido e ainda meio descoordenado, corre e pára diante de uma montra de bonecos. A mão no vido, o olhar cruzado entre os bonecos feios e a mãe, aquela que é a melhor do mundo, um novo olhar para a montra e nova corrida.

Um homem estava sentado e curvado num banco de madeira, parecia só então ter reparado nele. Parou, aproximou-se, voltou a parar, curvou-se um pouco e olhou. Ele estava a chorar. 

A mão pequenina pousou no joelho do homem buscando um apoio para que ela pudesse curvar-se mais e ver melhor, questionando-se se era verdade e porque razão aquele homem, um homem tão grande, estava a chorar. As lágrimas caíram mais pesadas quando ele sentiu a mão pequenina tocar-lhe como um carinho e olhou os seus olhitos bem lá no fundo. 

A criança, arregalou os olhos, franziu a testa, perdeu o sorriso e caminhou, lenta, para a mãe. Descobrira o que acreditara não poder ser verdade, que os homens também choram, alguns, pelo menos, porque o pai que a abraçava e beijava era forte, não tinha medo de nada, o seu colo era o lugar mais seguro no mundo.

A mãe afagou-lhe os cabelos e, num instante, a criança recuperou toda a sua segurança: os homens choram, mas a mãe, embora chore também, porque ela já a havia visto chorar algumas vezes, é forte e segura e sabe que fazer em cada momento para a proteger. Não houve palavras, mas também ela, a mãe, vira que o homem chorava.
Hesitou, pensou, repensou, caminhou, sentou-se e saudou o homem. Na resposta, perguntou se poderia ajudar.

Eram 17h19 em ponto, um comboio partiu, rumava a Handaye. Cruzaria terras de Espanha, paisagens verdes de Donostia, San Sebastián em linguagens castelhanas. Uma mudança, e um TGV levaria aquelas gentes a Paris.

Um comboio partiu e um homem ficou. Sentado no banco de madeira, levantou mais o olhar, e limpando o rosto com um lenço branco disse: “Obrigado, mas nem eu sei o que quero, procuro não sei o quê nem quem, cruzo-me entre um mundo desconhecido e virtual e um outro que tenho, conheço e é real. Queria partir e ficar, o meu coração gemia e dizia que não fosse, a imagem dela atraía-me como íman e chamava por mim numa voz de sereia.

Chorei porque hesitei, morria por dentro, mas uma mão pequenina no meu joelho e um rosto curioso no meu olhar, num instante me fizeram decidir”. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O Vazio (2)




Um homem veio. Tinha saído do comboio que por momentos parara e num instante retomara a viagem sob a ordem da bandeira vermelha, suja e enrolada num pedaço de madeira velha. O olhar lançou-se sobre o homem sentado no banco: a ponta do atacador de um dos sapatos estendia-se no chão dando a perceber que a ordem e a desordem se debatiam na sua mente. O olhar vago dirigia-se para o infinito e por isso não enxergava o mundo que à sua volta girava em cada dia. Quem o conhece mais de perto sabe que vive a vida como um zumbi, meio alheado na ilusão virtual de uma vida entre o real e a ficção, ao jeito da mulher que lhe toldou a razão e contrai o coração.


O homem que acabara de chegar, depois de passar o olhar pelo relógio, abriu o fecho do saco que trazia ao ombro e tirou um jornal que, por momentos atirou sobre o banco de madeira, para se sentar, pesadamente, logo de seguida.

Um olhar fugidio sobre as parangonas do jornal, permitiu ver em título que o “défice custa 1380,00€ a cada português”. “Uma vergonha, pensou, afinal de contas para onde vai este país? Insegurança, pobreza, justiça tardia e inconclusiva sobretudo quando estão em causa os grandes, os poderosos”. Abanou a cabeça e fechou os olhos como se quisesse sacudir e esquecer o que acabava de ler e pensar. “Bom dia” - Ouviu a saudação que lhe era dirigida e respondeu com um “bom dia” morno e arrastado, em jeito de quem não parece minimamente interessado em estabelecer qualquer tipo de comunicação com aquele desconhecido transeunte de barba por aparar e sorriso que lhe sai mais da expressão que dos lábios.

Voltando aos seus negativos pensamentos, vociferou em silenciosa antipatia “Como é que esta gente tem disposição para dizer bom dia a gente que nunca viu mais gorda nem mais magra?”. Sentiu-se ainda mais cheio de si mesmo e fechado num mundo onde nada mais cabia, além dele próprio e da desconhecida beldade, por causa de quem estava ali taciturnamente sentado num banco de madeira e à espera de um comboio que o levaria não se sabe onde e, sinceramente, nem porquê.

O outro levantou-se, anónimo, e partiu com o jornal debaixo do braço. Levava no rosto o seu sorriso, que não pôde partilhar, e no coração, mais que na mente, um ranchinho de três filhos e uma esposa que há seis meses não via. Saiu e já os braços se abriam em arco e a voz os envolvia num quente “Oláááá” revelador de um amor e saudade que a distância e o tempo não apagam, antes solidificam e enraízam.

E ele continuou ali sentado à espera do que não encontrava, à escuta do que não se ouvia.

Som estridente de ferro contra ferro, um comboio parou.