Recordou-se, como se estivesse em dia
de más memórias, de quando ouviu comentar, lá na sua terra, que uma jovem dos
seus tempos de escola havia sido violentada fisicamente, numa tentativa de
abuso por parte de dois desconhecidos. Marcou-o tanto o facto, simplesmente
porque nutria, nesse tempo, um sentimento profundo de amizade a que ele não
hesitava em chamar amor. Nesse dia uma semelhante lágrima lhe banhara o peito.
O Carlos partiu: despediu-se e saiu sem, graças a Deus, se ter apercebido do que perpassava na
memória do homem do banco de madeira.
Voltou, sem querer evitar, a pensar na Clara, na mistura de sentimentos com que ele mesmo a olhou
depois daquele dia: um misto de compaixão e ódio fervilhava dentro de si.
Compaixão para com ela, e asco que nutria para com aqueles que dela quiseram
retirar prazer. Meditou em todas as situações que lhe vieram à mente e lhe fizeram aquecer e
dilatar mais o ódio para com todos os que, de qualquer modo usavam os outros
para crescer na vida ou neles assentavam bases para uma desregrada busca de prazer.
Agora, que estava sozinho sentado à mesa do
café, teve tempo para uma reflexão diferente. Por acaso parara-lhe, dois ou
três dias antes, nas mãos, um episódio bíblico referente à jovem e aos velhos
que, por vingança, pediam a morte para ela. Percorria o mundo à sua volta, as
notícias e a publicidade dos meios de comunicação social.
Percebeu, em momentos, que vivemos num mundo que cresce à base da
exploração, tanto dos sentimentos como dos bens dos outros: exploram-se as
crianças exigindo-se-lhes que cresçam depressa demais e sem tempo nem espaço
para viverem com intensidade todos, e cada um, dos momentos ou etapas da vida;
exploram-se os adolescentes levando-os a experiências novas e “radicais” que os
puxam para fora de si mesmos, e não para a vivência radical da vida, seguindo
slogans que chamam a usar a vida e não a vivê-la; exploram-se os jovens a quem,
muitas vezes, não se dão oportunidades de trabalho, nem motivos ou espaço para
repartirem a sua generosidade; exploram-se os pais a quem tudo se exige para
que os filhos não caminhem sem o mesmo (e falso) nível de vida dos outros que
comungam da mesma idade; exploram-se os sentimentos para os usar em proveito
próprio, como se até eles fossem descartáveis; explora-se a natureza a quem
tudo se pede em questões de matérias-primas e a quem de agradece depositando
nela o lixo que a intoxica e destrói.
Atirar a primeira pedra por parte de quem não tem pecados? Quem? Pensou:
ainda que o quiséssemos não poderíamos livrar-nos desta sociedade de
exploração. Mas poderíamos, pelo menos ser diferente e limpar o mundo de tudo o
que é lixeira humana.
Levantou-se,
pegou no jornal, pagou o café, agradeceu e…